Brasil e Portugal, os caminhos da separação e os motivos da
reaproximação
José Mauricio de Carvalho
Professor Titular aposentado da UFSJ
Professor do Instituto Presidente Tancredo de Almeida Neves - IPTAN
josemauriciodecarvalho@gmail.com
Resumo
Esse texto, preparado como subsídio para o projeto
nossas desculpas que
I. Dos fatos
A separação política entre Brasil e Portugal é um processo histórico
bem conhecido e envolve acontecimentos que se estenderam de 1821 até
1825. As duas datas marcantes nesse período são o 7 de setembro de 1822,
quando Dom Pedro de Alcântara e de Bragança, príncipe do Brasil, declara a
independência e 29 de agosto de 1825, quando Portugal reconheceu a
independência brasileira.
Parece que o estopim desse processo foi a convocação das Cortes
Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, que era uma Assembleia
Constituinte reunida depois da Revolução Liberal do Porto, ocorrida em 1820.
Essa Assembleia pretendia dar uma constituição liberal a Portugal, mas em
relação ao Brasil desejava seu retorno à antiga condição de Colônia. Entre
outras medidas, a Corte exigiu o retorno do rei Dom João VI a Portugal que,
não tendo outra alternativa regressou, mas deixou o filho e herdeiro como
Príncipe Regente e junto com ele boa parte da elite que o acompanhara em
sua vinda alguns anos antes. As Cortes também retiraram muitos poderes de
Dom Pedro que, na prática, restava administrar a capital e o Estado do Rio de
Janeiro. Dom Pedro foi pressionado pelos militares portugueses liderados pelo
General Jorge Avilez a acatar as decisões das Cortes a reconhecê-las. Além
disso, o obrigaram a demitir alguns dos seus ministros mais fiéis que haviam
permanecido e não acompanharam Dom João no retorno a Portugal. Dom
Pedro cedeu às pressões do General, mas criou-se uma tensão com os
militares fiéis às Cortes que somente cresceu nos meses seguintes com as
decisões das Cortes. Por exemplo, ato contínuo, as Cortes extinguiram os
tribunais judiciais criados por Dom João VI quando ele chegou ao Brasil, em
1808.
As medidas das Cortes desagradaram crescentemente a elite política
brasileira que desejava manter o Brasil Unido a Portugal, mas como monarquia
autônoma, naquele tipo de relação estabelecida desde 1815. Esta elite tinha
tendências distintas, as mais importantes eram as lideradas por José Bonifácio
de Andrada e Silva e por Joaquim Gonçalves Ledo. Quando as Cortes
Portuguesas exigiram o retorno do Príncipe Regente essas elites o estimularão
a permanecer no país, dando origem ao famoso dia do fico (9 de janeiro de
1822). Novamente o General Jorge Avilez reagiu, mas desta vez seus dois mil
soldados foram cercados por uma força de dez mil homens liderada pela
Guarda Real da Polícia. Dom Pedro demitiu o General do posto de
Comandante Militar do Brasil e exigiu sua retirada para o outro lado da Baía de
Guanabara, onde ele deveria aguardar o retorno a Portugal. Assim se
passaram os fatos.
Os dois grupos que compunham a elite brasileira apontaram então dois
caminhos a seguir, os liberais liderados por Gonçalves Ledo propuseram a
constituição de uma Assembleia Constituinte para dar conta da nova situação.
José Bonifácio de Andrada, à época nomeado Ministro do Reino e Negócios
estrangeiros preferia que a nova Constituição fosse feita por juristas ligados ao
Imperador. O Príncipe Regente, embora próximo politicamente de Bonifácio,
preferiu a outra alternativa.
Nesta altura, a 25 de agosto de 1822, D. Pedro viajou a São Paulo para
assegurar a lealdade daquela Província, considerada estratégica, às suas
decisões, deixando Dona Leopoldina como regente, na capital. Enquanto
estava de viagem as Cortes anularam todas as decisões do Gabinete liderado
por José Bonifácio, tiraram todos os poderes do Príncipe Regente e
determinaram seu imediato regresso a Portugal, bem como o da Imperatriz que
deveria acompanhá-lo. Dona Leopoldina reuniu o Gabinete e tomou a decisão
de separar-se de Portugal. Depois mandou um emissário informar Dom Pedro
as últimas determinações da Corte e a decisão que ela e o Gabinete tomaram.
Quando Dom Pedro recebeu as notícias do seu Gabinete, já próximo à cidade
de São Paulo, as margens do riacho Ipiranga, proclamou solenemente a
independência do Brasil diante de sua Guarda Pessoal e da Comitiva que o
acompanhava.
A notícia voou. Quando a comitiva chegou à cidade de São Paulo a
notícia já se espalhara e o povo nas ruas, com grandes manifestações de
apoio, o recebeu como Rei do Império do Brasil. Em 14 de setembro, já
festejado em toda parte, Dom Pedro retornou ao Rio de Janeiro e escreveu a
seu Pai dando notícia desses fatos. Ele assinou a carta como Regente e
confirmou ser Dom João VI, o legítimo Rei do Brasil independente. Como essa
solução, naquela circunstância, não era viável Dom Pedro foi proclamado
Imperador do Brasil independente, forma como o povo lhe aclamava, com o
título de Pedro I. A coroação foi feita, apesar da advertência do príncipe que
renunciaria ao trono se o pai voltasse ao Brasil. O título de Imperador parecia
mais adequado ao dirigente de um Império Constitucional como o Brasil se
preparava para ser.
A reação nas províncias foi vencida pelas tropas leais ao Imperador
comandadas por oficiais estrangeiros. O apoio inglês e das outras nações
europeias foi decisivo para que o processo caminhasse rapidamente para seu
desfecho, com a assinatura de um Tratado de Amizade e Aliança entre Brasil e
Portugal e do pagamento de uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas.
II. Da preparação da independência
Os fatos descritos no item anterior somente tiveram o desfecho
relatado em razão de uma longa preparação. Ela evitou tanto a fragmentação
do Império em muitas e pequenas Repúblicas, como ocorreu na América
espanhola, como assegurou a estabilidade política pela manutenção da casa
real portuguesa no comando da nova nação, o que não ocorreu nos outros
países latino-americanos.
Para esse processo haver seguido do modo descrito muitas coisas
ocorreram, algumas com origem em Portugal, outras fora do país. Entre as
últimas destacam-se: 1. A vinda da família real portuguesa para o Brasil,
acompanhada por cerca de quinze mil pessoas, fugindo da invasão
napoleônica, em 1808; 2. A manobra feita por D. João VI de proclamar o Brasil
um Reino Unido a Portugal e Algarve, em 1815, para fugir da determinação dos
tribunais europeus que não queriam um rei europeu residindo numa colônia, 3.
A expansão dos ideais iluministas, que entretanto foram vividos em Portugal de
forma muito singular como em seguida se indicará.
Entre os fatores que vieram da tradição lusitana destacam-se: 1. A
forma singular com que o iluminismo desenvolveu-se em Portugal com as
reformas pombalinas; 2. O diálogo com o empirismo inglês e com o liberalismo
que levaram a elite lusitana a pensar numa monarquia constitucional como um
caminho para a modernização política do país.
Considerando-se que os fatos externos são bem conhecidos e muito
bem estudados pelos historiadores vamos deixar de comentá-los para tratar
dos itens relativos à lusitana e ao contexto teórico experimentado pelo país.
Para entender as reformas pombalinas e o modo como o Ministro de
Dom José I concebeu a modernização do país não se pode perder de vista a
evolução do pensamento moral e político em Portugal durante a modernidade.
II. 1. O debate moral e político dos séculos XVI ao XVIII
No livro
Caminhos da moral moderna, a experiência luso brasileira
(1995), publicado na coleção reconquista do Brasil, dividimos em três períodos
o tempo histórico que vai do século XVI até o governo pombalino denominado
por Joaquim de Carvalho de
mencionou apenas dois: um período barroco e outro escolástico. Dividir a
Segunda Escolástica. O historiador português
Segunda Escolástica
modelo ético ali encontrado e a entender as soluções políticas encontradas
pela liderança nacional. O primeiro momento, que corresponde ao século XVI,
aproximou o debate moral da preocupação renascentista, atribuindo-lhe um
sentido humanista que abrandou o rigor da moralidade medieval. São
representantes mais notáveis deste período: Frei Heitor Pinto (1528-1584) cuja
obra marcante é
Manoel de Góis (1524-1597), autor das famosas
Conimbricense sobre os livros de moral a Nicômaco
humanistas e a atividade comercial era inevitável que se interrogasse se
estaria nisso a trilha da felicidade” (CARVALHO, 1995, p. 55). Os moralistas
mencionados entendem que a felicidade humana decorre da aproximação com
Deus. Acrescentam, no entanto, que a construção de um Estado terreno
atuante e o respeito às autoridades nele constituídas anteciparia a formação de
uma sociedade justa e feliz, cuja concretização definitiva seria o céu. Essa
autoridade terrena chancelada pelo Papa era expressão da vontade de Deus.
Os moralistas aceitam, pois, o progresso geral do Estado e têm uma visão de
política que saiu do Concílio de Trento, isto é, apostavam num governo onde
Estado e Igreja estivessem unidos e o poder temporal fosse chancelado pelo
religioso.
O que ocorre durante o século XVII foi o afunilamento dessa
mentalidade no campo moral. Na medida em que o racionalismo cartesiano se
sobrepôs ao jus naturalismo tomista, como dissemos em
caminhos da moral na gênese do tradicionalismo luso brasileiro
em três períodos esclarece melhor as variações doImagem da vida cristã, Frei Amador Arrais (1530-1600) e Pe.Disputas do Curso. “Crescendo nele os ideaisMeditação sobre os(1995):
a discussão moral voltou-se quase exclusivamente para
o projeto restrito da felicidade pessoal, o controle de
qualquer efeito não intencional da conduta, ou melhor, a
se concentrar na conquista das virtudes que levariam à
paz interior após a morte
É isto o que caracteriza esse segundo período do qual são
representantes mais notáveis: Frei Antônio das Chagas (1631-1682), autor de
(p. 83).
Cartas espirituais
prático para seguir o bem e fugir do mal
instruída na doutrina cristã
Frei Sabino Bononiense, que escreveu
período restringem felicidade à salvação eterna. O projeto moral perdeu
amplitude de horizontes, porque a conduta reduziu-se a princípios
rigorosamente ditados pela razão para a conquista da salvação da alma. Esta
distinção é imprescindível, os moralistas do segundo período abafaram a idéia
da riqueza do Estado em nome da pureza interior. Do ponto de vista político
mantinham a mesma posição de respeito ao poder real, como vindo
diretamente de Deus, o que contribuiu para o fortalecimento da monarquia
portuguesa, mas o ideal moral enfraqueceu o país que não conseguiu
acompanhar os passos dados pelas nações liberais. Essas últimas estimuladas
pela ideia de que o enriquecimento e fazer da terra um jardim digno da glória
de Deus era o que de melhor podia realizar o homem nessa vida entregaramse
ao trabalho e a poupança, como esclareceu Max Weber em
protestante e o espírito do capitalismo.
e Pe Manoel Bernardes (1644-1710), que escreveu Estímulo; Pe. Manoel Fernandes, autor de Alma, Pe. Antônio Vieira, notável escritor dos Sermões eLuz moral. Os discursos morais desseA ética
II. 1.1 O projeto político pombalino
Sobre o projeto político pombalino comentamos em
de estado,
longo, mas optamos por reproduzido parcialmente (1997):
Sebastião José de Carvalho, Marquês de
Pombal (1699-1782) estruturou um
pensamento político marcado pela retomada
dos moralistas do séc. XVI. Ele partiu do
princípio aristotélico de que a saúde social era
preferível à individual, no que acompanhou Frei
Heitor Pinto, propugnou um modelo orgânico
de estado, igualmente postulado pelo mesmo
sacerdote e pelo Frei Amador Arrais, para
quem o príncipe era a cabeça e o povo os
membros. Insistiu na benignidade da ação da
autoridade e na justiça desta como o fizera
Amador Arrais. Atribuiu à justiça e ao bem
comum, citando Aristóteles o papel de objetivos
da ação governamental como o fizeram os
mesmos contra-reformistas, defendeu os
pobres contra os ricos. A repercussão ética
desse projeto foi por nós avaliada em
Pombal e a razãopublicado na Revista Ética e Filosofia Política. O texto citado abaixo é
Caminhos da moral moderna
Itatiaia, 1995), notadamente na parte final do
capítulo primeiro. Examinaremos aqui os
elementos caracterizadores do projeto político
pombalino, especialmente as repercussões
nele causadas pelo conceito de razão de
estado (...). Nas
(Belo Horizonte:Observações secretíssimas
(1775), Pombal apontou alguns princípios
norteadores da política.
1. Os três primeiros princípios referem-se à
relevância de estimular o surgimento de súditos
produtivos “que são os braços e as mãos de
todos os Estados”. Pombal falava também da
importância de se formar especialistas capazes
de ocupar postos da administração pública.
(...).
2. O nono princípio (...) referia-se ao estado
de riqueza. Os súditos deviam poder “possuir
carruagens novas e de bom gosto” além de
vestirem-se ricamente, “desde os indivíduos de
primeira nobreza até os de última plebe”. Essa
visão mais favorável ao enriquecimento não
contraditava a tese de Manuel de Góis, desde
que também para Pombal o enriquecimento do
Estado era admitido. A novidade consiste
justamente na releitura do princípio de justiça
do Frei Amador Arrais, atendendo ao objetivo
de aproximar-se do povo (...).
3. No oitavo princípio o Ministro lusitano
referiu-se à harmonia que devia existir entre as
classes, revelando a influência de Heitor Pinto.
No entanto, em carta a seu sobrinho demonstra
ter consciência de que os conflitos entre a
nobreza e o povo eram inevitáveis, devendo o
governante tomar partido do povo. Ao que
parece a organicidade do estado era um ideal a
ser buscado, mas o dia a dia estava cheio de
conflitos. A vida social com a pluralidade dos
gostos, preferências, valores e interesses foi
reconhecida à parte do desejo de considerar o
estado como unidade. Ele escreveu (1997):
“
contra os pobres, seja defensor das pessoas miseráveis,
porque de ordinário os poderosos são soberbos, e
pretendem destruir e desestimular os humildes (...) Toda
a república se compõe de mais pobres e humildes que
de ricos e opulentos; e nestes termos, conheça antes a
maior parte do povo a V.Excia. por pai, para o
aclamarem defensor da piedade” (p. 1).
Não consinta (asseverou) V.Excia. violência dos ricos
(...)
4. Em nome de uma vida social eticamente
melhor, deviam agir os governantes, alterando,
cuidadosamente os costumes. Os homens
comuns, ao que parece, não vislumbravam o
bem geral, nem se comportavam para instituílo,
limitando-se a buscar o próprio bem. O
comando do povo, posto nas mãos do monarca
e seus auxiliares, devia orientar a busca
desses bens mais amplos, esses mesmos que,
como sugerira Platão (Leis, 874e, 875c),
estavam voltados para a preservação do
Estado. (...). Estamos longe do propósito
aristotélico de promover a justiça pela prática
de uma vida virtuosa, diz Pombal:
Quando a razão o permite, e é preciso desterrar os
abusos, e destruir costumes perniciosos..., seja com
muita prudência e moderação: que o modo vence mais
do que o poder. Esta doutrina é de Aristóteles e todos
aqueles que a praticaram não se arrependeram. (...) Não
altere cousa alguma com força, e nem violência, porque
é preciso muito tempo e muito jeito para emendar
costumes inveterados, ainda que sejam escandalosos
(ibid).
5. A autoridade dos governadores e ministros
eram, no sentir de Pombal, uma continuação
da do rei. Os auxiliares do monarca deviam
primeiramente nele pensar. Afirmaria
taxativamente: “nos generais substitui El-Rei o
seu alto poder, fazendo deles imagens sua”
(id., p. 2). A origem do poder dos ministros
estava no monarca, razão pela qual nele devia
pensar o auxiliar (...).
6. Pombal advertiu seu sobrinho quanto às
consequências danosas da falta de lealdade
dos empregados da casa, que trazem para
dentro o que não se passa fora e para lá levam
suas próprias opiniões e não as do seu senhor.
(...). Eis a advertência de Pombal:
“São os criados inimigos domésticos, quando são
desleais, e companheiros estimados, quando são fiéis;
se não são como devem ser participam para fora o que
sabem de dentro e depois passam a dizer dentro o que
se não sonha fora” (id., p. 1).
7. A natureza dual do homem, que Pombal
reconheceu e que já encontrara expressão nos
textos de Heitor Pinto, corpo material e parcela
espiritual, também expressou-se nos escritos
de Machiavelli. Enquanto o corpo obedecia as
paixões, o espírito era “uma substância
participante da razão incorpórea, imortal,
invisível, acomodada a reger o corpo” (Heitor
Pinto, 1940. p. 49).
(...)
Tendo tido êxito na separação entre a
ética e a política, Pombal não conseguiu,
entretanto, propor uma moral social consensual
e laica, capaz de intermediar os valores
públicos da política e os escolhidos no mundo
interior" (p. 158).
Pois bem, a longa citação acima reproduzida, revela o diálogo de
Pombal com a primeira geração de contrareformista, deixando intocada as
teses morais e políticas herdadas da tradição, mas fazendo uma tentativa de
aproximação do modelo de governo racional do iluminismo naquilo que ele não
contrariava a tradição ou que podia ser proposto como Razão de Estado.
Pombal, por exemplo, pretende incorporar a ciência e faz isso reformando a
Universidade de Coimbra. Ele inicia um esforço sério de aproximação com a
modernidade do qual participam os autores abaixo comentados.
Esse terceiro período, que não é considerado por Joaquim de
Carvalho, é marcado pelo esforço para demonstrar que a existência humana
tinha um sentido mais amplo do que a salvação, embora suas conclusões
estivessem longe dos ideais modernos concebidos nos países liberais. É o
ideal pombalino que resume o iluminismo português, a incorporação da noção
de progresso do Estado e a implementação da ciência moderna, que resultou
na reforma da Universidade de Coimbra. Foi em Coimbra que estudou a maior
parte da elite política que influiu nos rumos do país no processo da
independência.
Os autores mais representativos desse momento pombalino são:
Teodoro de Almeida (1722-1804), Antônio Soares Barbosa (1724-1801) e Bento
José de Souza Farinha (1740-1820). O primeiro adotou um ecletismo filosófico,
rompendo com os moralistas do ciclo anterior. Soares Barbosa, autor de
Discurso sobre o bom e verdadeiro gosto da Filosofia
importante investigação moral no livro
(1776), elaboraTratado elementar de Filosofia Moral
(1792). Nesse livro, conclui que a moral está ligada estreitamente a Deus e
depende da religião. Considera a virtude fonte da felicidade e afirma que ela
decorre do cumprimento das leis que Deus deu aos homens. Os dois filósofos
dialogam com autores modernos, mas recusam a fundamentação racional da
ética como era feito por muitos iluministas. O primeiro preserva a dependência
da moral à religião e o monopólio da Igreja Católica no estabelecimento da
moral social, o segundo submete o fundamento da moral ao Estado. Souza
Farinha, por sua vez, propõe uma fundamentação divina ao direito natural. Ele
justifica o ideal moral tradicional, tanto o seu caráter eudemonista, como a
condenação da ambição, avareza e deleite, isto é, a riqueza e sexo, no mesmo
espírito dos moralistas do ciclo anterior. Estamos diante da tentativa de
incorporar os ideais modernos, sobretudo a ciência, mas sem mexer na
concepção política tradicional ou na aproximação entre Igreja e Estado. Porém,
essa geração começa a construir um diálogo com o pensamento liberal, não do
mesmo modo como ele era vivido pelos britânicos e norte americanos.
Pretendiam incorporar o liberalismo, mas sem romper com as tradições
políticas e morais do Reino, mantendo o ideal de Pombal. Vejamos alguns
aspectos desse liberalismo eclético que se forma na esteira do legado de
Pombal.
II. 2. O liberalismo ético normativo de Cairu
O fundamental destas considerações sobre Cairu encontra-se no
terceiro capítulo de
José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, era baiano e viveu de 1756 a
1835. Herdeiro intelectual de Adam Smith, Cairu avaliou de forma singular o
projeto ético- normativo, econômico e social contido em
O livro clássico de Smith foi inicialmente concebido como trabalho de moral e
foi decisivo na construção da ciência econômica. A obra permitiu entender as
relações humanas baseadas num ideário normativo que conjuga os interesses
individuais com a construção de benefícios sociais. Assim foi porque além dos
temas operativos que alimentam a economia como ciência, capital final e
circulante, teoria dos juros, volume da população, etc., Smith abordou objetivos
e fins da existência humana, assuntos que envolvem a responsabilidade e a
liberdade. Ele nos apresenta o ideal de uma vida singular a ser construída no
esforço diuturno para atender nossas necessidades materiais.
Há um aspecto importante no liberalismo: trata-se de uma teoria da
vida pensada como liberdade e entendida como realização subjetiva. A
existência singular e as propriedades das pessoas merecem ser protegidas da
arbitrariedade estatal porque associa a liberdade pessoal à responsabilidade e
o trabalho do indivíduo à propriedade. Além disso, o liberalismo resguarda o
funcionamento da vida social pelo cumprimento de leis escritas e pela
tolerância, como propôs John Locke, mas especialmente assegura a
sobrevivência coletiva do grupo porque apresenta o trabalho como fonte de
valores. Conforme o propósito de Smith, o trabalho livre e responsável
assegura a vida coletiva e enriquece os Estados, resguardando o ideal de
homem como subjetividade livre. Para a realização destes ideais é que ele
estrutura a doutrina econômica que se torna uma teoria sólida, com temas
específicos. Pois bem, O Visconde de Cairu leu essas teses em
Nações
adequadas ao Brasil, no momento em que a colônia recebia um Rei
determinado a superar o atraso econômico e social de sua colônia. Esse Rei
adotou uma série de atos que mudaram rapidamente a face do país: estímulo a
criação da indústria, reforma e abertura dos Portos ao comércio internacional,
criação do Banco do Brasil, criação do Museu Nacional, da Biblioteca Nacional,
da Escola Real de Artes e do Observatório Astronômico. Todas essas medidas
e a adoção das práticas liberais, Cairu acreditava, propiciaria o
aperfeiçoamento moral dos cidadãos, lançando o país numa era de progresso
e desenvolvimento.
Assumindo o liberalismo como ideal de vida, Cairu aponta uma rota
para a intelectualidade brasileira incorporar o pensamento moderno e estar à
altura de seu tempo. Veja que esse é o objetivo da geração pombalina. Como
dissemos (1995) o “liberalismo ético normativo de Cairu integra o conceito
iluminista de valorização do homem que supera o teocentrismo medievo, a
outro conceito iluminista, a saber, o de progresso permanente” (p. 124).
Portanto, o Visconde via na obra de Smith uma forma de preparar o país para
superar problemas históricos e incorporar o pensamento moderno. Ele
demonstra confiança na economia política para viabilizar a vida pessoal,
funcionar como elemento de coesão das ciências, assegurar a vida social e
servir de guia para a existência das pessoas. Cairu reconhece que esta forma
de entender o liberalismo era própria dos intérpretes ingleses de Smith daquele
momento.
Cairu afirmou em
humana na riqueza e prosperidade das nações
postumamente, que a aplicação dos princípios liberais não afetava os destinos
da monarquia portuguesa, antes o contrário se daria, o desenvolvimento do
Brasil conferiria ao rei português “uma glória que nenhum grande soberano ou
Estado jamais teve” (p. 26). Porém, as revoltas nas províncias que se seguiram
à independência o levaram a abandonar este entendimento. Os movimentos
rebeldes nas províncias que contestavam a autoridade monárquica ou a
incapacidade do regime de oferecer maior igualdade entre os homens
permitiram-lhe desconfiar do liberalismo como projeto ético normativo e a
procurar fundamentos mais estáveis para a moral e a organização política do
país. Ele foi buscar este princípio na moral católica, acompanhando os
intelectuais portugueses como Pascoal José de Melo Freire que concluira,
ainda no século XVIII, que a modernização dos costumes e das leis em
Portugal não podia prescindir da moral católica.
Nos últimos anos de vida concluiu que a universalidade da ética não
pode depender da força de simpatia ou da utilidade como quiseram David
Hume e Adam Smith. Também concluiu que o desenvolvimento material pura e
simplesmente não assegurava a paz, a prosperidade e a estabilidade política e
irá se aproximar de posições conservadoras em matéria religiosa. Na obra
Caminhos da moral moderna; a experiência luso-brasileira.A Riqueza das Nações.A Riqueza das, concluindo que a adoção das teses econômicas do liberalismo eramEnsaio econômico sobre ao influxo da inteligência(1851), publicado
Constituição Moral e Deveres do Cidadão
incapacidade da razão e dos sentimentos estabelecerem sozinhos os rumos
que garantissem o aprimoramento pessoal e o desenvolvimento automático
das nações. As virtudes naturais não eram fruto das alterações da moral
católica e não podiam prescindir dela. Por outro lado, não se podia também
assumir uma moral cristã amplamente negativa da condição humana como o
fora a tematização contrareformista, cujos ciclos tivemos oportunidade de
resumir no item anterior. Assim ele segue o espírito da geração pombalina ao
propor uma forma de desenvolvimento humano e material associado aos
valores e virtudes cristãos. Na ocasião, ao lado das críticas ao ateísmo,
também combate os excessos do utilitarismo com base no catolicismo.
O resultado deste esforço foi importante para colocar o país no espírito
dos novos tempos e mostra que de alguma forma os rumos escolhidos pela
intelectualidade brasileira eram uma continuidade do que fora desejado pela
geração pombalina.
Na proporção em que avança em sua reflexão, Cairu desconsiderou a
harmonia de interesses que se operava na vida social, independente das
instituições ou tradições. Tendeu a tratar o problema como uma dicotomia que
oscilava entre a paixão e a razão perdendo de vista a ordem cultural, aquela
que Adam Smith havia denominado de mão invisível. O resultado foi uma
síntese ampla onde se traçou o perfil de uma existência virtuosa (vícios,
virtudes e deveres) inserida na conduta humana em geral (consciência moral,
sentido da felicidade, fontes, leis e deveres morais). Ele também tratou do
papel da liberdade e da vontade. Todo esse esforço especulativo revelou,
contudo, uma inconsistência insuperável, a redução da doutrina dos valores a
um ideal distante, traçado de antemão e voltado para obter a felicidade noutro
mundo pela prática de virtudes que significavam a negação de uma existência
humana. Silva Lisboa entendeu que pelo controle moral da economia o homem
podia cumprir os desígnios de Deus, ocasião em que se revelam os pontos
obscuros do projeto, herdeiro da insuficiência moral do pombalismo.
Insuficiência que aparece em três níveis: primeiro na conciliação do propósito
moral do contrareformismo com o liberalismo de Locke e Smith que aproxima a
ação humana da vontade de Deus de modo irreconciliável com o ideal de
salvação da Contrareforma, segundo na fundamentação religiosa da ética na
contramão da meditação moderna e terceiro na inadequada abordagem da
ordem cultural que não se reduz aos instintos e nem é resultado de deliberação
racional.
(1824), Cairu considera a
II. 3. O liberalismo filosófico-político de Silvestre Pinheiro Ferreira
Pinheiro Ferreira era filho de fabricantes de seda, nasceu em Lisboa a
31 de dezembro de 1769 e morreu em 1 de julho de 1846, sendo sepultado no
Cemitério dos Prazeres.
As análises abaixo foram retiradas quase integralmente do livro
Contribuições contemporâneas à história da filosofia brasileira
que (2001):
. No livro se diz
A parcela do pensamento de Pinheiro Ferreira que merece
maior destaque, pela influência que deixou no pensamento
brasileiro é o exame do empirismo e a meditação sobre temas
políticos. Suas idéias foram sistematicamente estudadas e
suas principais obras reeditadas recentemente:
filosóficas sobre a teórica do discurso e da linguagem, a
Estética, a Dioceósina e a Cosmologia,
fascículos a partir de 1813,
Preleçõespublicadas emCategorias de Aristóteles (1814),
Ensaios de Psicologia (1826), Constituição política do Império
do Brasil e Carta Constitucional do Reino de Portugal
(1830),
Projetos de ordenações para Portugal
do cidadão em um governo
elementares de ontologia
filosofia geral e aplicada às ciências morais e políticas (1839),
Teodicéia ou tratado elementar sobre a religião natural e a
religião revelada
(1831 / 1832), Manualrepresentativo (1834), Noções(1836), Noções elementares de(1845). (p. 51).
Silvestre Pinheiro Ferreira dedicou-se a muitas questões na fase em
que se transferiu para o Brasil, acompanhando Dom João VI. Ele preocupavase
em fundamentar o empirismo e estabelecer as bases do liberalismo político
ou do que ele chamava de direito constitucional. A sua proposta política é aqui
o objeto principal de nossa atenção. Pinheiro Ferreira julgou necessário
fundamentar a liberdade política, pois vivia num ambiente cultural onde o tema
não era privilegiado. Os motivos eram a tradição absolutista da Coroa
portuguesa e a tradição contra-reformista que preservava valores da
cristandade medieval.
Para superar as dificuldades morais de nossa cultura, o filósofo decide
estudar a relação entre a consciência e o corpo para justificar a ação livre. Ele
reconhece que havia uma união entre o corpo e a alma, mas a última guardava
autonomia. Tal autonomia parece-lhe um pressuposto para a liberdade. Ele a
reconhece com base nas vivências interiores que coloca ao lado das
sensações externas. Nas primeiras sustenta as ações voluntárias que
caracterizam o agir humano e nas outras o instinto como ocorre nos animais.
A justificativa da liberdade para a ação era necessária para
fundamentar a liberalização das instituições políticas. Este era o objetivo de
boa parte da chamada geração pombalina. O que o distingue dos outros
representantes do movimento é pensar o liberalismo político inserido num
sistema filosófico que não destoasse da tradição portuguesa. É daí que vem o
seu projeto de aproximar as idéias de Aristóteles daquelas presentes no
empirismo. Ao fazê-lo encontra os meios de responder às objeções do
iluminismo alemão que desenvolveu forte oposição a Aristóteles, bastando
considerar a meditação de Kant. Os alemães combatiam também a dogmática
católica, sustentada no aristotelismo e na escolástica.
A adoção da organicidade entre os poderes e a preocupação com a
representação dos interesses fora tema do liberalismo político inglês. Pinheiro
Ferreira, como Locke, sugere a monarquia constitucional como o sistema a ser
implantado. Não havendo no Império Português experiência no assunto afirma
que o fundamental para implantação deste sistema político era organizar a
representação da sociedade, acompanhando Locke que, como lembra Paim
(1987):“formulou a doutrina da representação como sendo de interesses” (p.
21).
A meditação política de Pinheiro Ferreira prolonga-se além da década
de vinte enquanto esteve no Brasil, estendendo-se pelos anos trinta, período
em que vive refugiado em Paris. Ao exílio se obrigou porque as idéias liberais
entraram em descrédito depois do retorno da família real a Portugal. Mesmo
antes do retorno a Portugal, o rei e seus colaboradores próximos consideravam
que os movimentos denominados liberais tinham pouca consistência teórica e
prática, como era o caso da Revolução Pernambucana de 1817. Mesmo a
revolução de 20 em Portugal revelava uma proposta de intelectuais e políticos
pouco conhecedores ou experimentados nas idéias liberais. Apesar da aliança
com a Inglaterra, os portugueses não acompanhavam a evolução das idéias
liberais no país aliado.
Pinheiro Ferreira convencera-se que não era possível virar as costas
para o liberalismo e esperava reformar as instituições políticas do seu país,
evitando o caminho das revoluções ou dos rompimentos bruscos com a
tradição. Seu propósito era evitar as formas radicais assumidas pelo iluminismo
francês que operou uma crítica radical ao cristianismo medieval, optando por
eliminá-lo ao invés de renová-lo e que em matéria de política culminou na
Revolução Francesa. Pinheiro Ferreira deixou lições de aperfeiçoamento
humano e social que constituem o ponto de partida da filosofia brasileira. O
bem coletivo ou social foi pensado com base no utilitarismo de Bentham, mas a
tese de Bentham, como a de Locke, mereceu adaptação. Não seria legítimo,
explicou, em nome do bem do maior número, sacrificar os interesses de uma
expressiva minoria. A questão dos interesses pede contínua negociação para
não sacrificar a minoria, observa José Esteves Pereira na introdução que
escreveu às
Obras Escolhidas de Silvestre Pinheiro Ferreira (1996):
Os interesses deviam considerar o fato de que o maior
bem do maior número (sem uma ponderação crítica) é
um erro de transcendência (...), pois basta refletir que por
esta definição, numa sociedade composta de duzentos
sócios, noventa e nove serão sacrificados a cento e um.
(p. 16).
O seu espírito conciliador e moderado se observa no documento que
apresentou às Cortes em 4 de julho de 1821. Nele defende a soberania das
Cortes, mas também a harmonia necessária entre elas e o rei. As leis votadas
no parlamento precisavam, a seu juízo, do consentimento do monarca para
entrar em vigor. Pinheiro Ferreira preparava Portugal para viver o liberalismo
constitucional, projeto que também aspirou implantar no Brasil durante o tempo
que aqui viveu.
O aprofundamento destas idéias é tema do
governo representativo
promover a transição de um governo historicamente absolutista para um
sistema representativo. Acompanhando o liberalismo de então estabelece
níveis de rendimentos econômicos para integrar o colégio eleitoral. Distingue
os direitos do cidadão que nascem da lei, dos chamados direitos naturais,
inerentes à sua condição humana.
A consciência dos problemas decorrentes da instabilidade política que
vem da disputa pelo poder, mostra os motivos que o levaram a propor o Poder
Moderador, o que vem a ser adotado na Constituição Brasileira, para assegurar
o equilíbrio entre os poderes. Esse instituto seria capaz de mediar os
elementos em conflito e harmonizar os poderes do Estado. A organização
política que se desenvolve no segundo reinado tem um caráter próprio. Seus
articuladores se afastam de algumas teses de Pinheiro Ferreira, mas elas
foram referência para os liberais brasileiros que pensaram o Brasil
independente.
Manual do cidadão em um, livro fundamental onde ele esclarece seu propósito de
III. 4. O liberalismo católico de Diogo Antônio Feijó
Diogo Antônio Feijó nasceu na cidade de São Paulo em 3 de agosto de 1784
e ali morreu em 10 de novembro de 1843. Seguiu carreira eclesiástica e se ordenou
em 25 de fevereiro de 1809. Sua obra fundamental foi publicada com o título de
Cadernos de Filosofia
esteve ligado a Portugal. Seu propósito era realizar aquilo que os representantes da
geração pombalina tomaram como tarefa, aproximar-se das ideias modernas, sem
abandonar a moralidade católica e a noção de poder constantiniano, isto é, o vínculo
entre o Estado e a Igreja. No caso de Feijó as ideias liberais viriam de um outro
pensador: o alemão Immanuel Kant.
e foi escrito entre 1818 e 1821, últimos anos em que o Brasil
Cadernos de Filosofia
ministrou durante parte da vida que viveu em Itu. Nos
reflexões repetindo as três perguntas consagradas por Kant: “
foi escrito como texto didático para o curso que FeijóCadernos Feijó iniciou suasque posso saber?
(Crítica da Razão Pura),
esperar
p. 91). É também importante lembrar que Feijó se referia ao objeto da Metafísica como
o fizera o filósofo alemão e não como propusera Antônio Genovesi (1713-1769). Para
Feijó, Metafísica era a ciência de questões ligadas ao conhecimento humano
(
que devo fazer? (Crítica da Razão Prática) e que me é dado? (Crítica do Juízo), o que revela conhecimento do kantismo” (Carvalho, 2000.conteúdo, objeto e origem) e não uma teoria do ser.
Feijó desenvolve o seu conceito de filosofia como investigação sobre o
entendimento humano, acompanhando Kant, mas não o segue quando estuda
os problemas morais. A concepção de moral elaborada por Feijó revela que ele
nesses assuntos se aproximou do eudemonismo aristotélico-tomista e das
teses de Genovesi, continuando o que fora feito no iluminismo lusitano. Como
Kant entende a questão? Ele não queria uma vontade dirigida para fins outros
que não a execução dos atos morais. Agir moralmente era, para ele, agir pelo
dever. Quando uma ação não é comandada pela vontade de obedecer a lei,
não é autônoma, logo não é moral. Quando se orienta para o cumprimento da
lei a ação é moral e foi denominada de
é aquela escolha que orienta para o cumprimento da lei que comanda a ação.
boa vontade. Portanto, para Kant, moral
Para Feijó, ao contrário do que pensou Kant, a filosofia moral é a ciência que
trata dos deveres e meios de o homem alcançar a felicidade. Por natureza, o homem
dispõe de um conjunto de forças que o levam à ação. Feijó distingue duas em
constante disputa, o desejo de felicidade e amor, que orienta para os próprios
interesses, e o dever, que obriga a agir nobremente. Em resumo, assim é a natureza
moral do homem:
desejo da felicidade, fundado no egoísmo e amor da justiça,
sentimento nobre e desinteressado
uma razão que descobre os fins dessas propensões e pela capacidade de agir
livremente. É devido à liberdade que o homem abraça ou rejeita os objetos indicados
pelas propensões ou oferecidos por sua razão.
As nossas ações, explica o pensador, são guiadas por uma lei superior que
resulta das relações que têm os entes entre si. Essa lei é que nos leva a reconhecer
Deus como Criador e a nele confiar. Descobrimos, olhando a natureza, que tudo tem
uma razão, uma finalidade. Os corpos funcionam com vistas à manutenção da vida e
às faculdades humanas para promoverem a perfeição moral. Depois de tratar o
comportamento moral de modo cuidadoso, Feijó elaborou uma espécie de guia moral.
Esta investigação, tema do 3° Caderno, aparece resumidamente em
retrato do homem de honra e verdadeiro sábio
verdadeira sabedoria e felicidade consistem em temer a Deus e obter a salvação.
Foram muitas as suas indicações para uma vida moral. Desde o comer e
beber com moderação, fugir dos jogos de azar, trabalhar com parcimônia, descansar o
tempo necessário para recobrar as forças e voltar ao trabalho, respeitar a natureza do
corpo e do espírito e até evitar discussões inúteis e caprichosas. O sacerdote se
empenhou em mostrar que o trabalho é importante, que as riquezas materiais não são
detestáveis se são usadas com fins nobres, que a moderação nos usos e costumes é
o que melhor convém ao homem, que todos devem ser previdentes e buscar bens que
garantam uma velhice tranqüila. Esse guia, se seguido, é o retrato do sábio, segui-lo
“é receita de felicidade” (
A fragilidade do guia moral consiste em sugerir que a valorização da
existência humana e dos bens deste mundo podiam ser feitos sem contraditar os
valores veiculados na moral católica de índole contra-reformista, voltados exclusiva e
unilateralmente para a religiosidade do homem e pela profunda desconfiança do
mundo. Estas idéias resumem o programa de vida sugerido pelo liberalismo católico
de Feijó, completado pela prática política que desenvolveu como político que chegou a
regente do Império.
, sustentado na estima de si; tudo iluminado porO. Nesse texto, Feijó explicou que aidem, p. 172).
III. O caminhar separado de Portugal
Depois da independência ocorre um afastamento de Portugal e uma
aproximação com a França. Foi o esforço dos dirigentes nacionais para
encontrar novas referências e formas de pensamento de modo a dar um
destino autônomo ao Brasil. Nos colóquios Antero de Quental estudamos esses
aspectos e na preparação do VIII Colóquio tivemos ocasião de escrever o
seguinte texto preparatório ao evento:
Desde o VI Colóquio Tobias Barreto (Lisboa,
2002) temos nos ocupado da interface
Brasil/Portugal na política. Desse último
aspecto proponho-me aqui empreender o
primeiro balanço. A Independência do Brasil
coincide com o imperativo de proceder-se à
transição da monarquia absoluta para a
constitucional. A proposta que emergiu da
Revolução do Porto (1820) seria basicamente
aquilo que os ingleses vinham de conquistar,
isto é, a monarquia constitucional. Sem
partidos políticos, sem qualquer experiência de
funcionamento do Parlamento, pretendeu-se
queimar etapas o que demonstrou ser inviável.
Na transição para a monarquia constitucional,
tivemos um mestre comum: Silvestre Pinheiro
Ferreira (1769-1846). Seu pensamento político
acha-se suficientemente na obra
Pinheiro Ferreira, seu pensamento político
Coimbra, 1974, por José Esteves Pereira. No
que se refere ao destino histórico de sua
proposta dispomos de dois trabalhos
essenciais para o confronto que buscamos:
pensamento político português no século
XIX: uma síntese histórico crítica
2006), de Antonio Pedro Mesquita; e
do liberalismo brasileiro
de Antonio Paim.
A partir da separação política, Brasil e Portugal irão trilhar caminhos
diferentes, que se afastarão nos anos seguintes e dos quais pode ser tomado,
como exemplo, as posições da Igreja no momento pós independência. As
posições de Dom Romualdo Antônio de Seixas (1787-1860), assumindo um
liberalismo católico, na continuação do que fora proposto por Feijó e pela
geração pombalina é uma indicação desse afastamento. Como Primaz do
Brasil, Dom Romualdo isolou os elementos radicais do liberalismo e cuidou de
congregar os moderados, como queria Cairu, do que resultou a criação do
Partido Conservador e do
adotada pela Igreja Portuguesa e, de certa forma, da própria orientação do
Vaticano
aderiu firmemente ao governo representativo.
Parece que a aproximação com o liberalismo evitaria a radicalização
que ocorrera na Igreja Portuguesa que aderiu ao projeto miguelista e obrigou
Dom Pedro a confiscar as propriedades da Igreja. Conhecendo bem Dom
Pedro, D. Romualdo sabia que ele não era radical e que só tomara essa atitude
em razão de um tipo de projeto político tradicionalista e distante do que fora
preparado pela geração pombalina. A radicalização do processo político
português era devida, em grande medida, ao apoio dado pela Igreja ao projeto
miguelista de preservação da monarquia absoluta, modelo político que a
geração pombalina desejou superar.
Entre nós, D. Romualdo seria um dos artífices do governo
representativo e no encaminhamento da solução que desembocou no
Silvestre,O(Lisboa,História(São Paulo, 1998),Regresso. Note-se que essa posição destoa da1. D. Romualdo não só deixou de divulgar esta última no Brasil como
Regresso
maio de 1840, e logo adiante, em julho, levou a maioridade de D. Pedro, que
culmina com a Reforma do Código do Processo, em novembro de 1841. Tudo
isto transcorreu na 3ª Legislatura, a que pertencia Dom Romualdo como
parlamentar, tendo inclusive lhe incumbido presidir a Câmara entre 4 de maio e
3 de agosto de 1841.
Os caminhos da Igreja a partir daí já não interessam a nosso estudo.
Quanto aos problemas teóricos que vieram da geração pombalina, a
intelectualidade brasileira procurou solução para ela no ecletismo espiritualista
amplamente estudado por Antônio Paim em
movimento comenta que ele se estrutura continuamente desde o momento
inicial onde enfrenta o empirismo mitigado legado pela geração pombalino e
remanescentes da escolástica decadente (1999):
- Lei de Interpretação do Ato Adicional, aprovado na Câmara a 12 deA escola eclética. Sobre o
O ciclo de apogeu da Escola Eclética abrange as
décadas de cinquenta, sessenta, setenta e oitenta.
Nesses anos os seus principais integrantes estruturam o
ensino da Filosofia, ao nível do Colégio Pedro II e dos
Liceus provinciais. (...) O espírito geral desses cursos é o
de que a Filosofia enfatiza problemas teóricos, de
natureza permanente, sendo transitórios os sistemas.
Devido a tal entendimento, aperceberam-se da
magnitude do tema da fundamentação da moral
escapando, por essa via, ao plano do simples moralismo
(p. 317).
Sobre os rumos da escola eclética e os problemas que ela procurou
resolver escrevemos em
Brasileira
Contribuição contemporânea à História da Filosofia(2001):
A geração pombalina procurara incorporar, ainda no séc.
XVIII, o conceito de utilidade no debate moral. Ao fazê-lo
1 Temos em vista a Encíclica
condenação radical das novas instituições baseadas na doutrina liberal, que começa pela “lamentação dos
males atuais”, consubstanciados, como afirma, no “delírio da liberdade religiosa”, na “monstruosidade da
liberdade de imprensa”, na “condenação da rebeldia contra as legítimas autoridades” e dos males
decorrentes da separação da Igreja e do Estado. José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu (1756/1835)
assumiu a responsabilidade de publicá-la no Brasil, na obra que intitulou
Mirari Vos, do Papa Gregório XVI, datada de 14 de maio de 1832,Manual de Política Ortodoxa
(1832), reflexo de sua preocupação com a unidade nacional, ameaçada pela onda separatista em curso, na
suposição de que a religião seria o antídoto adequado.
não alterou substancialmente a moral contra-reformista,
que condenava os valores ligados à riqueza e aos bens
materiais, mas ampliaram a tolerância às paixões a eles
associadas, tendo em vista as vantagens públicas daí
advindas. Em nome desses benefícios abriram gradual e
continuamente as portas à ciência moderna,
evidenciando a necessidade de justificá-la e conciliá-la
com os aspectos nucleares da idéia de pessoa, pilar da
ética neotomista e da própria tradição cristã. Tal foi a
herança teórica a partir da qual se desenvolveu o
espiritualismo eclético em terras brasileiras no século
passado. Era necessário continuar o diálogo com a
ciência sem perder o que de mais valioso o homem
agrupara no seu universo axiológico, o respeito por si
mesmo e por sua capacidade de organizar a vida
segundo os cânones da liberdade. A filosofia moderna
nascera sob a égide do dualismo cartesiano, isto é, uma
teoria que distinguia a substância material da espiritual.
Separadas entre si, tais realidades apenas podiam ter
um ponto de contato onde Deus as unissem. O
empirismo suscitara, no seu esteio, mas diversamente,
uma interpretação mecânica da questão. O movimento
atribuiu à experiência sensório-motora o papel de fonte
do conhecimento, diferenciando a experiência interna, a
que o sujeito sentia intimamente, da externa, aquela
advinda do ambiente social ou natural. A singularidade
de nossa herança neotomista impediu-nos de adotar, na
íntegra, essa solução empirista. Ao contrário, pareceu
ser um aspecto fundamental defender o livre-arbítrio,
uma moral de forte inspiração religiosa e uma espécie de
ordem universal de base espiritual (p. 66/67).
O ecletismo seguiu seu caminho com Eduardo Ferreira França,
Domingos Gonçalves de Magalhães e muitos outros estudados por Antônio
Paim na obra anteriormente mencionada.
IV. Consideração final
O rápido resumo do que se passou em Portugal e no Brasil durante o
processo de separação política mostra que o Império do Brasil foi não só obra da
família real portuguesa, mas a concretização de um projeto político construído pela
geração pombalina e pela seguinte.
Depois da separação entre os países houve, da parte da intelectualidade
brasileira que aderiu ao ecletismo, um esforço para formar as bases de uma nação
independente, o que levou a um afastamento e a desconfiança compreensível da
tradição intelectual portuguesa. Esse clima ganhou novo componente com a
República, quando Dom Pedro II foi exilado com a família real portuguesa.
Durante a República, aqui e em Portugal, foram, contudo, estabelecidas as
bases para uma reaproximação entre os povos, uma vez que os sentimentos de
mágoa e de desconfiança de parte a parte já não tinham mais razão de ser.
Os estudos conduzidos pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro mostraram
os pontos de aproximação e afastamento entre os dois países, mas sobretudo criaram
a base para reconstruir o clima de fraternidade entre as duas nações, que partilhando
língua, boa parte da história e uma raiz cultural comum só têm a ganhar com a
reaproximação. O trabalho sistemático de investigação realizado pelos pesquisadores
nos Colóquios Antero de Quental e Tobias Barreto, desenvolve-se há quase trinta
anos havendo os seus resultados sido registrados em Atas publicadas por diferentes
Universidades e Entidades de Pesquisa. Em Portugal se realizam os Colóquios Tobias
Barreto e no Brasil os Antero de Quental.
No caso brasileiro, o
no ano de 1991 e as Atas do
Augusto Franco, de Aracaju, em 1993 (348 p.). O primeiro Colóquio foi dedicado ao
estudo de Antero de Quental e deu nome aos encontros seguintes. O
dedicado ao estudo da obra de
em Aracaju e na UFRJ. As Atas do evento foram publicadas pela Secretaria de Estado
da Cultura do Sergipe em 1995 (429 p.). O
Fundações Joaquim Nabuco, Gilberto Freire e outras instituições parceiras foi
realizado com módulos em Fortaleza e São Paulo, em 1995, e se dedicou ao estudo
de
da Cultura e Secretaria do Estado do Sergipe pelas Fundações organizadoras (218
p.). O
do pensamento de
Augusto Franco de Sergipe (232 p). O
Atas foram publicadas, em anexo, aos
promovido pelo IBF e USP em 1995, cujas Atas somente saíram em 1998. O
Colóquio
em São Paulo, na USP e na UFSJ e suas Atas foram publicadas, em anexo, aos
do VI Congresso Brasileiro de Filosofia
em 2003.
A partir do
temáticas e os módulos foram realizados no
(dedicado ao século XIX) e VIII (século XX) trataram do confronto entre o pensamento
político brasileiro e português. O IX e X foram dedicados ao confronto na área de ética
(séculos XVI-XIX, o nono) e Século XX, o décimo. As atas do VII Colóquio Antero de
Quental, foram publicadas em dois volumes pela UFSJ em 2007 (ISBN 978-85-88414-
28-0) e em 2009 (ISBN 978-85-88414-47-1). As atas do VIII, IX e X Colóquio foram
publicadas, respectivamente, nos números 3, 7 e 11 da Revista
do Departamento de Filosofia e Métodos da UFSJ, ISSN 1982-9124 (versão impressa)
e 2177-2967 (versão eletrônica). A revista em versão eletrônica pode ser acessada no
endereço:
I evento foi realizado com módulos em Aracaju e SalvadorColóquio Antero de Quental editadas pela FundaçãoII Colóquio foiSampaio Bruno e se realizou em 1993 com módulosIII Colóquio promovido pela UFSE,Cunha Seixas e Farias Brito. Suas Atas foram editadas com recursos do MinistérioIV Colóquio foi realizado em São Paulo e Brasília em 1997 e dedicado ao estudoAntónio Vieira e Leonardo Coimbra, Atas publicadas pela FundaçãoV Colóquio se realizou em 1998 na USP e suasAnais do V Congresso Brasileiro de Filosofia,VIdedicado ao estudo de Delfim Santos e António Sérgio realizou-se, em 1999,Anais, editado pelo Instituto Brasileiro de Filosofia,VII Colóquio os eventos tiveram a temática ampliada para síntesescampus Santo Antônio da UFSJ. O VIIEstudos Filosóficos,http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosóficos
Precisamos reconhecer, no âmbito do projeto
reconstrução do pensamento comum realizado pelo Instituto de Filosofia Luso-
Brasileiro, os trabalhos que estão sendo realizados pelo MIL (Movimento Internacional
Lusófono) para uma reaproximação dos povos que falam o português, que significa
encontrar fundamentos para fortalecer os laços da reaproximação e amizade Brasil-
Portugal.
nossas desculpas, o esforço de
Referências
CAIRU, Visconde de.
humana na riqueza e prosperidade das nações.
Guanabara, 1851.
CARVALHO, José Maurício de Carvalho.
Horizonte: Itatiaia, 1995.
______. Meditação sobre os caminhos da moral na gênese do tradicionalismo
luso-brasileiro. Lisboa,
Nova, 75-90, 1995.
______. Pombal e a razão de estado.
jan./jun. 1997, Departamento de Filosofia - UFJF. p. 145-158.
______.
ed. Londrina: EDUEL, 2001.
PAIM, Antônio.
1987.
______.
PEREIRA, José Esteves.
Pinheiro Ferreira.
POMBAL, Marquês de. Carta do tio, ministro, ao sobrinho, governador. In:
Ensaio econômico sobre ao influxo da inteligênciaRio de Janeiro: RevistaCaminhos da moral moderna. BeloCultura, Centro de História da Cultura da UniversidadeÉtica e Filosofia Política. v. I, n. 2,Contribuição contemporânea à história da filosofia brasileira. 3.Evolução histórica do liberalismo. Belo Horizonte: Itatiaia,A escola eclética. 2. ed., Londrina: EDUEL, 1999.Introdução às Obras Escolhidas de SilvestreLisboa: Banco de Portugal, 1996.
Documentação e atualidade política
. Brasília: UnB, n. 3, abr./jun., 1977.
articula eventos de reaproximação Brasil-Portugal, parte dos fatos que levaram
à separação política entre Brasil e Portugal, aponta os episódios que
prepararam a independência, resume a realidade política portuguesa na
modernidade até o momento pombalino, revela como a elite pombalina
preparou as bases da nova nação americana e explica porque o debate teórico
que se seguiu à independência somente pode ser entendido à luz da história.
Considera que a afirmação do Brasil como nação exigiu, no momento que se
seguiu à independência o afastamento de Portugal e de suas referências
teóricas, mas que hoje deixamos de ter razões para essa separação e
descobrimos muitos motivos para uma reaproximação.