Martírio do Tiradentes: luzes e trevas
“Liberdade essa palavra,
que o sonho humano alimenta,
não há ninguém que explique,
e não há ninguém que não entenda”.
(Cecília Meirelles, “Romanceiro da Inconfidência”)
As cores dos admiráveis trabalhos de pintura produzidos por Oscar Araripe inspiram-me a escrever este texto.
Evoquei o escritor mexicano Octavio Paz, premiado com o Nobel de Literatura, quando apontou as características da cultura ibérica, na qual se forjaram os países da América Latina:
“Para nós, latino-americanos, a evolução da Espanha e de Portugal é um fato de grande significação histórica. Muitas vezes se disse que o fracasso da democracia na Espanha e em Portugal, assim como em suas antigas colônias, era consequência de seu passado. Nossos povos não viveram a Reforma protestante e quase não conheceram o Iluminismo, isto é, não participaram dos grandes movimentos espirituais que prepararam a instauração das democracias modernas” (1970-79: Tempo Encoberto, in A Conquista do Espaço Político. São Paulo: Jornal da Tarde, coletânea de ensaios, 1983, p. 23-47).
Nos idos do século 18, a Inconfidência Mineira surgiu como movimento libertário influenciado pelas ideias iluministas em voga na Europa - sobretudo na França, onde eclodiria a Revolução Francesa (1789).
Alguns inconfidentes estudaram em Coimbra, Portugal:
“Eram, portanto, esses doutores, legítimo produto da filosofia das Luzes. (...) Todos quantos voltavam de Coimbra para a colônia traziam na bagagem cultural o iluminismo, a filosofia que se contrapusera aos baluartes da Contra-Reforma” (João de Scantimburgo. O Brasil e a Revolução Francesa. São Paulo: Pioneira, 1989, p. 104).
O alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, foi o animoso herói da Inconfidência Mineira. Sofreu os rigores do retrógrado Direito Penal português – o famoso Livro V das Ordenações Filipinas:
“Outra não é a linguagem de BASILEU GARCIA: ‘As Ordenações assinalavam-se pela exorbitância das penas, que alcançavam ferozmente fatos às vezes insignificantes, pela desigualdade de tratamento entre os vários agentes do delito, pela confusão do Direito, a Moral e a Religião e por outros muitos vícios. Dentre as penas, a de morte era prodigalizada. As execuções se efetuavam na forca e na fogueira. Em alguns casos, eram precedidas de suplícios, como a amputação dos braços ou das mãos do condenado. Tão grande era o rigor das Ordenações, com tanta facilidade elas cominavam a pena de morte, que se conta haver Luis XIV interpelado, ironicamente, o embaixador português em Paris, querendo saber se após o advento de tais leis, alguém havia escapado com vida’” (Ruy Rebello Pinho. História do direito penal brasileiro: período colonial. São Paulo: Bushatsky, Editora da Universidade de São Paulo, 1973. p. 18).
Tiradentes foi executado e esquartejado. Com seu sangue, foi lavrada certidão de que se cumprira a sentença. A pena de infâmia recaiu sobre a sua memória e as pessoas dos seus descendentes. O cadáver foi decapitado e a cabeça erguida em um poste de Vila Rica. Rapidamente a recolheram e jamais foi reencontrada. As demais partes do corpo foram espalhadas ao longo do Caminho Novo. Jogaram sal sobre o terreno da residência do condenado, para que nada mais ali florescesse.
Tiradentes, enfim, pregava as luzes, mas foi punido sob as trevas.
As cores de Oscar Araripe, contudo, o fazem renascer iluminado.
Libertas quae sera tamen: liberdade ainda que tardia.
As luzes nos iluminarão, ainda que tardiamente. O Brasil espera.
Rogério Medeiros Garcia de Lima - Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Doutor em Direito pela UFMG e professor universitário.