Parva sed BonaPequena mas boa. Nem tão pequena, mas muito boa. Assim é a biblioteca particular do escritor e colecionador José Augusto Bezerra. Muita sorte, competência, apego e desapego, profundo conhecimento bibliográfico e às vezes um bom dinheiro brindaram o Ceará com a melhor e mais bela biblioteca particular do Brasil, só comparável à famosa congênere de José Mindlin, o grande colecionador paulista.A biblioteca Bezerra, contudo, a par seus originais únicos e diferenciados, é 'cearense', não só por ter sido formada a partir do Ceará, mas por situar-se num dos locais onde mais se cultiva a leitura e os livros, esta nossa Fortaleza ainda culturalmente carente e sem gestores culturais eleitos.É uma biblioteca amada. E isto se nota pela correção como é guardada e mostrada. Num ambiente climatizado, de ricas encadernações esmeradas, entre lindas raridades, a pessoa extraordinária de José Augusto, com amor devocional e entusiasmo vai mostrando e explicando cada livro, cada manuscrito, o seu contexto social, histórico, as suas excepcionalidades e ensinamentos.Uma incursão inesquecível entre livros de ouro. Um Top-Kapi precioso de gemas impressas, essa Alexandria renascida nessa Torre do Tombo pessoal. Uma fantástica coleção de Dicionários, considerada a mais completa do Brasil, incluindo o pai de todos, o Ambrósio Calepino, de 1546, e a primeira edição de Os Lusíadas, com as rimas completas de Camões, de 1669, a curiosíssima história dos jesuítas no Brasil, do padre Manffei, de 1590, uma linda história natural escrita pelo médico particular de Maurício de Nassau, vários clássicos da língua tupi, incluindo a gramática de José de Anchieta e o dicionário de Gonçalves Dias, raras e belas Bíblias quinhentistas, ao lado de uma Cearália notável, e magníficos livros de arte, embelezados por seus conteúdos e pela pátina do tempo, e até documentos comprometedores, como um pedido quase criminoso do Marechal Deodoro, que jamais o deveria ter escrito mas que ali está a registrar um pouco do caráter do proclamador da nossa República oficial. E mais cartas de Veríssimo, Alencar, Capistrano, recibos da Marquesa de Santos (pedindo dinheiro, é claro), e a preciosíssima edição do Dom Casmurro do dia da Proclamação da República, com uma inédita dramatização do evento, por Joracy Camargo, o célebre autor de Deus lhe Pague. Uma biblioteca de sonhos.Feliz o país que possui pessoas como José Augusto Bezerra. Sem ele seus raríssimos livros e documentos sobre o Brasil e a humanidade poderiam ter se perdido ou sido vendidos para o exterior. Ali, sob seus olhos e de sua mulher Bernadete, este patrimônio material e imaterial é mostrado, consultado e guardado como tesouros que realmente são. Um importantíssimo acervo particular, construído dia a dia, num país que prima pela ausência de políticas de aquisição de acervos culturais e artísticos. Harvard, a célebre universidade americana, nasceu de uma coleção de um barbeiro chamado John Harvard, que gostava de livros numa época (como a nossa) em que se privilegiava, e muito mais hoje, o valor das armas e das futilidades diárias.
Pintor e escritor